sexta-feira, 10 de julho de 2009

Encontraria Cortázar?

Tão perseguidor quanto Bruno, Horácio Oliveira, Teseu ou o personagem do conto “Manuscrito encontrado em um bolso” – aquele que buscava encontros em jogos subterrâneos no metrô parisiense, em junho de 2008, aproveitado uma viagem a trabalho, passei alguns dias em Paris, percorrendo a cidade – sobretudo o Bairro Latino e o Sena, fotografando e tentando reconhecer um pouco da cidade onde viveu, por mais de trinta anos, o escritor argentino Julio Cortázar, buscando um reconhecimento, ou entendimento, que poderia ser (e foi) útil na fase final da biografia do escritor, projeto no qual me concentro há mais de quatro anos.
Tour recomendada aos leitores fieis – não são poucos, levando em consideração o volume de descobertas a cada página, capítulo, rua ou esquina atravessada. O arco da Quai de Conti, que Oliveira atravessa, por exemplo, logo na primeira página de “O jogo da Amarelinha”, uma singela passagem para a Pont des Arts e para o Sena. Fiquei imaginando quantas vezes o próprio Cortázar teria passado por aquela singela passagem do Instituto Francês. Eu – que percorria quase todos os dias o trajeto rue de Seine, a Quai de Conti, tomei o lugar e o transformei em um túnel, em um ritual de ligação entre o meu presente e o passado de Cortázar. Encontraria Cortázar?
O tempo regrediu naqueles dias e eu tinha a certeza que o encontraria por ali, sentado no Old Navy, no número 150, do Boulevard St Germain, como sugeriu Gabriel Garcia Marquez.
Na volta, decidi organizar uma exposição chamada "Cortázar em Paris", seguindo um roteiro pré-estabelecido, com fotografias de lugares citados nos contos e lugares onde morou o escritor: além do percurso de “Amarelinha”, o metrô parisiense, a galerie Vivienne, o Jardin des Plantes, a cidade universitária, o Bairro Latino, o número 9 Place du General Beuret, o número 4 da rue Martel, o Hospital Saint Lazare e, claro – morbidamente como fazem os fãs de Jim Morrison, o Cemitério de MontParnasse.
Como faltavam alguns (vários, na verdade) lugares – e levando em consideração o rigor com o material que eu tinha (poucas fotografias estavam à meu contento), passei a buscar – sempre o grande perseguidor e encontrar pessoas que moravam e moram em Paris para me ajudar com a exposição. Resultado: encontrei – que me foi apresentada, em um acaso profissional, por sua mulher, Giuliana Bonatelli, Sergio Werner, engenheiro de formação e, como ele diz, um “autodidata diletante”.
Foi uma grata surpresa, como dizem. A afinidade com as muitas maneiras de se combater o nada, como o próprio Cortázar definia: além da fotografia, a música, o cinema e sobretudo e fundamentalmente: a literatura.
Sergio – encara a fotografia como um descendente do Haiku (poesia japonesa). Tão virginiano quanto o próprio Cortázar e vivendo a onze anos em Paris, um dia, trocou sua reflex Canon por uma Leica compacta e não parou nunca mais. Seus ensaios fotográficos (encontrados no site aji|game of go: http://aji2000.free.fr) quase sempre são inspirados por poemas, livros, escritores que vão de Baudelaire a Bashô, quadros de Matisse e paisagens chinesas, além, obviamente, da musa Giuliana e das corridas de bicicleta.
A busca continua. Encontrar um cronópio em Paris – quebra-cabeças, lance de dados, labirinto de ruas e túneis, não é tão fácil quanto parece. Talvez seja mais fácil encontrar a Maga, ou o próprio Oliveira.
E, no entanto, prosseguimos. As fotografias e os textos nasceram aos poucos e naturalmente, Sergio, um pouco aquele personagem de Willian Hurt, no “Até o fim do mundo” (Bis ans Ende der Welt, 1991), um dos road movies do cineasta alemão Wim Wenders, outro perseguidor de imagens. No filme, um homem se lança à captura de imagens em todo o mundo e busca, através de equipamentos de alta tecnologia, fazer com que sua mãe, cega, consiga enxergar através de seu olhar.
O resultado desses meses de trabalho é a exposição Cortázar em Paris, na linha direta com o “Roteiro Lírico e Sentimental da Cidade do Rio de Janeiro, e Outros Lugares por Onde Passou e se Encantou o Poeta de Vinicius de Moraes”, projeto trabalhado pelo poeta ao longo de décadas, sem nunca chegar a ser concluído, embora tenha deixado diversos poemas do conjunto com o artista plástico Carlos Scliar, já nos anos 50, e que surge, coincidentemente, em 2009 – cinco anos para o centenário do nascimento do escritor e quando é celebrado o Ano da França no Brasil.
Encontraríamos Cortázar?

Cassiano Viana

Texto Sergio

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Encontraria Cortázar?

“O homem está na cidade, como uma coisa está em outra. E a cidade está no homem que está em outra cidade”. É possível ler Paris através dos textos de Cortázar.

Nascido em 1914, em Bruxelas, Bélgica, onde seu pai exercia cargo diplomático, o escritor Julio Cortázar mudou-se com quatro anos para a Argentina, onde viveu até 1951, quando deixou o país rumo à França.

Um dos responsáveis pela projeção internacional de autores latino-americanos na década de 60 - ele divide com Jorge Luís Borges o mérito de ser o grande escritor de contos da América Latina, Cortázar fez de Paris sua casa e musa inspiradora. “Paris é uma mulher, e é um pouco a mulher de minha vida”, dizia. “Na Europa, tive de confrontar todo o meu sistema de valores, minha maneira de ver, minha maneira de ouvir (...). A realidade européia deixou o meu chão ensaboado, me tirou do lugar”.

Cortázar viveu em Paris até sua morte, em 1984. Poucos anos antes, em 1981, recebeu, do presidente François Mitterrand, o título de cidadão francês. Está enterrado no cemitério de Montparnasse.

Cortázar produziu grande parte de sua obra em Paris, onde morou por quase toda a vida. Na França, enquanto escrevia livro como As Armas Secretas (1959), o romance O Jogo da Amarelinha (1963), Histórias de Cronópios e de Famas (1970) e Octaedro (1974), trabalhou como tradutor da Unesco.

Considerada a sua obra mais importante, O Jogo da Amarelinha é a história de um homem, chamado Oliveira, que deixa a herança e deixa a América por outra cidade, Paris. É, de certa forma, a estória do escritor e de tantos outros que fizeram de Paris. E um passeio pela Cidade Luz dos anos 60.

Outros contos famosos, como "Axolotl", do livro Final de Jogo (1956) e "Manuscrito Encontrado em um Bolso", do livro Octaedro (1974), são ambientados, respectivamente, no Jardin des Plantes e no metrô parisiense.

Passagem


"Caminar por Paris significa avanzar hacia mi". Trecho do filme "Cortázar", de Tristan Bauer (1994).

Jardin de Plantes













Metamorfose

"Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los no aquário do Jardín des Plantes e ficava horas olhando-os, observando sua imobilidade, seus imperceptíveis movimentos. Agora sou um axolote".

E assim começa o conto "Axolotl", do livro "Final de jogo" (1956), onde o narrador, depois de uma constante observação dessa espécie de salamandra, cujo nome asteca – seu único habitat natural consiste dos lagos próximos da Cidade do México, em uma tradução aproximada significa “monstro d’ água”, em função de sua extrema voracidade – e na mitologia asteca era a evocação do deus Xolotl, troca de lugar com o animal, passa a ser um axolotl "observando o antigo observador", como explica o professor Davi Arrigucci, no fundamental "O escorpião encalacrado".

O jardim, criado com o nome de Jardim do Rei, foi originalmente plantado por Guy de La Brosse, médico de Luís XIII, de 1626 a 1735, como um herbário de plantas medicinais e aberto ao público em 1640. O Jardim das Plantas (francês Jardin des Plantes) é um jardim botânico aberto ao público, situado no 5º Arrondissement de Paris como parte integrante do Museu Nacional de História Natural.

"Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha que acontecer. Cada manhã, ao inclinar-me sobre o aquário, o reconhecimento era maior. Sofriam, cada fibra do meu corpo entendia esse sofrimento amordaçado, essa tortura rígida no fundo da água. Espiavam algo, um remoto senhorio aniquilado, um tempo de liberdade em que o mundo fôra dos axolotes. Não era possível que uma expressão tão horrível, que conseguia vencer a inexpressividade forçada de seus rostos de pedra, não levasse uma mensagem de dor, a prova dessa condenação eterna, desse inferno líquido que padeciam. Inutilmente queria provar a mim mesmo que minha própria sensibilidade projetava nos axolotes uma consciência inexistente. Eles e eu sabíamos. Por isso não houve nada de estranho no que aconteceu. Minha cara estava grudada no vidro do aquário, meus olhos tratavam uma vez mais de penetrar no mistério desses olhos de ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto a cara de um axolote imóvel junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, em vez do axolote vi minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, do outro lado do vidro. Então minha cara se afastou e eu compreendi.

Só uma coisa era estranha: continuar pensando como antes, saber. Notar isso foi, no primeiro momento, como o horror do enterrado vivo que desperta para seu destino. Fora, minha cara voltava a se aproximar do vidro, via minha boca de lábios apertados pelo esforço de compreender os axolotes. Eu era um axolote e sabia agora instantaneamente que nenhuma compreensão era possível".


Julio Cortázar, Axolotl. Conto disponível em:
http://www.literatura.us/cortazar/axolotl.html


Galerie Vivienne




No interior da Passagem

Inaugurada em 1823 com o nome de Galerie Marchoux, foi rapidamente rebatizada de Vivienne - já que seu acesso principal ficar na rue Vivienne. Com 176 metros de comprimento e 23 de largura, a Galeria Vivienne foi projetada pelo arquiteto François Jean Delannoy totalmente em estilo neoclássico.

A galeria é recoberta por vidraças, mosaicos, pinturas e esculturas, com uma cobertura de vidro. Assim, durante o dia, a claridade natural ilumina o interior da passagem.

A Galerie Vivienne é um dos cenários do conto “O outro céu”, de “Todos os fogos o fogo” (o outro é a Galeria Güemes, em Buenos Aires).

O personagem principal de “O outro céu” – um dos bons exemplos do virtuosismo de Julio Cortázar e de suas experiências com duas vozes – vive entre mundos, perambula por essas misteriosas galerias entre prostitutas – é apaixonado por uma delas –, cafetões e assassinos.

"Me ocurría a veces que todo se dejaba andar, se ablandaba y cedía terreno, aceptando sin resistencia que se pudiera ir así de una cosa a otra. Digo que me ocurría, aunque una estúpida esperanza quisiera creer que acaso ha de ocurrirme todavía. Y por eso, si echarse a caminar una y otra vez por la ciudad parece un escándalo cuando se tiene una familia y un trabajo, hay ratos en que vuelvo a decirme que ya sería tiempo de retornar a mi barrio preferido, olvidarme de mis ocupaciones (soy corredor de bolsa) y con un poco de suerte encontrar a Josiane y quedarme con ella hasta la mañana siguiente".

(...)

"La Galerie Vivienne, por ejemplo, o el Passage des Panoramas con sus ramificaciones, sus cortadas que rematan en una librería de viejo o una inexplicable agencia de viajes donde quizá nadie compró nunca un billete de ferrocarril, ese mundo que ha optado por un cielo más próximo, de vidrios sucios y estucos con figuras alegóricas que tienden las manos para ofrecer una guirnalda, esa Galerie Vivienne a un paso de la ignominia diurna de la rué Réau-mur y de la Bolsa (yo trabajo en la Bolsa), cuánto de ese barrio ha sido mío desde siempre, desde mucho antes de sospecharlo ya era mío cuando apostado en un rincón del Pasaje Güemes, contando mis pocas monedas de estudiante, debatía el problema de gastarlas en un bar automático o comprar una novela y un surtido de caramelos ácidos en su bolsa de papel transparente, con un cigarrillo que me nublaba los ojos y en el fondo del bolsillo, donde los dedos lo rozaban a veces, el sobrecito del preservativo comprado con falsa desenvoltura en una farmacia atendida solamente por hombres, y que no tendría la menor oportunidad de utilizar con tan poco dinero y tanta infancia en la cara".

Julio Cortázar, "O outro céu". Conto disponível em:
http://www.juliocortazar.com.ar/cuentos/elotro.htm

4 Ruel Martel



Cité Universitaire



Unesco

Lost In Paris


Trecho de "Cortazar: apuntes para un documental", de Eduardo Montes-Bradley.
A poesia está nas ruas. Cortázar e Carol Dunlop, sua última esposa, brincam de esconde-esconde em Paris. Final dos anos 70, início dos anos 80.

4 Rue Martel





A partir de 1979, Cortázar passa a viver com Carol Dunlop em um pequeno apartamento no número 4 da rua Martel. É onde escreve “Um tal Lucas” e “Queremos tanto a Glenda”. Dois anos depois, em 1981, recebe a tão esperada cidadania francesa. No entanto, a rua Martel não é só alegria: Cortázar vive ali a tristeza da morte de Carol, em novembro de 1982, a solidão de finalizar “Os Autonautas da Cosmopista“ – projeto dele e de Carol, adoece e passa os últimos anos de vida.

“Minha querida mãe, minha querida Ofélia. Carol se foi como um fiozinho de água entre os dedos. Se foi docemente, como ela era, e eu estive ao seu lado até o fim, os dois sozinhos na sala do hospital onde passou dois meses, onde tudo resultou inútil. Até o final esteve segura de que melhoraria, e eu também, mas nos dois últimos dias somente ela, por sorte, conservou sua esperança que eu havia perdido depois de falar com os médicos. De nenhuma maneira o dei a entender, a acompanhei como se nada tivesse mudado, e nas últimas horas consegui que ninguém entrasse para molestá-la e fiquei ao seu lado, cuidando, até que o último calmante que lhe haviam dado foi adormecendo-a pouco a pouco. Não soube de nada, não sentiu nada nesse momento final. A enterrei no viernes no cemitério de Montparnasse, um bairro que ela amava muito e todos os nossos amigos estiveram com ela e comigo. Posso dizer, penso que lhes fará bem, que me acompanharam como vocês o fariam caso estivessem aqui e isso me ajudou a suportar um pouco a distancia que me separa de Buenos Aires e o oco infinito da minha tão querida Carolina. Não posso escrever muito, para mim é difícil e vocês compreenderão. Estarei ausente algumas semanas e creio que só assim poderei me habituar a esse apartamento tão cheio de Carol, tão habitado por ela. ”

Carta a Hermínia Descotte e Ofélia Cortázar. Paris, 10 de dezembro de 1982.


Atualmente, o prédio fica aberto em horário comercial, é um misto de residencial e comercial, com algumas pequenas dentro dele.

Cielo

Cortázar em Paris

Cite Universitaire
56 Rue d’Alésia
54 Rue Mazarine
91 Rue Broca
24 bis Rue Pierre Leroux
10 Rue de Gentilly
9 Place du General Beuret
4 Rue Martel
Cemitério Montparnasse


Céu

Cortázar finaliza “Os Autonautas da Cosmopista“.O livro sairia em novembro de 1983. Os direitos foram cedidos ao povo nicaragüense.

“Leitor, talvez já o saiba: Julio, o Lobo, termina e organiza sozinho este livro que foi vivido e escrito por Osita e por ele, como um pianista toca uma sonata, as mãos unidas em uma busca solitária de ritmo e melodia (...) A ela lhe devo, como lhe devo o melhor de meus últimos anos, terminar sozinho esse relato. Bem sei, Osita, que terias feito o mesmo se eu chegasse a te precedesse na partida, e que tua mão escreve, junto com a minha, estas últimas palavras nas quais a dor não é, não será nunca, mais forte que a vida que me ensinaste a viver, como mostramos nessa aventura que chega aqui a seu final, mas que segue, segue em nosso dragão, segue para sempre em nossa autopista”.

Tudo tem cheiro de despedida: viaja a Buenos Aires – para encontrar amigos e familiares, Cuba – para se encontrar com os amigos da Casa das Américas, Nicarágua, organiza “Salvo el crepúsculo”, livro que reuniria todas as poesias que havia escrito e que seria publicado de forma póstuma.
Duas vezes teve que ser internado de urgência no Hospital Saint Lazare. Aurora o atendia e preparava a roupa para a internação, Luis Tomasello o levava e o trazia de volta: “Se entro uma terceira vez, já não saio”, disse Cortázar quando regressou para sua casa depois de vários dias no hospital. No hospital seguiu trabalhando. Com as últimas forças, se acomodava na cama do quarto e escrevia poemas para um livro de quadros de Tomasello. Às vezes, se erguia para olhar de relance pela janela o pátio do Hospital Saint Lazare, onde está internado.
Cortázar morre em um domingo, 12 de fevereiro de 1984. Foi sepultado dois dias depois, no cemitério de Montparnasse, pouco antes do meio-dia. Fazia frio e apenas um pouco de sol passava entre as árvores.
Ali, debaixo de uma mesma lápide que desde então nunca deixou de estar acompanhada por um ramo de flores amarelas, descansam Carol Dunlop e Julio Florêncio Cortázar, enormíssimo cronópio.